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quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Ai ai as livrarias

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Não consigo pensar em cegos sem me lembrar duma frase de Benjamin Péret (cito-a de memória, como acontece com tudo o resto): “Não é verdade que a mortadela é fabricada por cegos?” Para mim, esta afirmação, sob a forma de pergunta, é tão certa como uma verdade do evangelho. Claro que algumas pessoas podem achar absurda a relação entre os cegos e a mortadela, mas para mim é o exemplo mágico duma frase totalmente irracional que é brusca e misteriosamente fulminada pelo estrondo da verdade.
Luis Buñuel, O meu último suspiro
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De todos os cegos do mundo havia um de quem Luis Buñuel não gostava nem um bocadinho. Era Jorge Luis Borges. “É evidente que é um bom escritor, mas o mundo está cheio deles. Além disso, não respeito ninguém só pelo facto de ser um bom escritor. São precisas mais qualidades”. A Buñuel o autor de Aleph parecia-lhe “bastante presunçoso e adorador de si mesmo. Em todas as suas declarações, sinto qualquer coisa de pedante (sienta catedra, como se diz em espanhol) e de exibicionista”. Isto, claro, além “do tom reaccionário de algumas das suas conversas e do seu desprezo pela Espanha”.
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Ao ler certas merdas nos jornais, tal como a Buñuel apodera-se de mim “uma cólera divina. Como se pode ter tão pouca vergonha?”. A verdade é que há pessoas que  exibem publicamente uma presunção tão cega e tão cínica e uma hipocrisia tão pedante e tão sonsa que é revoltante. E fazem-no,sem pecado, até com jactância, com um riso de puta na cara-de-pau.
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Vem isto a propósito de uma crónica publicada pelo premiado escritor António Tavares no “jornal” As Beiras. Trata-se de uma lamentação pela morte das livrarias.
O cronista, que sabe exactamente o número de livrarias que existem em Portugal (e quantas fecharam em Espanha, quantos livros se editaram e se importaram etc., etc., ) - lamenta muito o seu triste fim – refere mesmo que “há hoje cidades que já não têm livrarias na verdadeira acepção da palavra”; mas depois sugere que não deixa de se viver por isso. A seguir interroga-se sobre como se repõe a “identidade que se vai perdendo e que se sabia ter qualidades” e remata com uma graçola sonsa: diz que lhe perguntam onde se vende o “seu” livro e que, “desfasado” que é do mundo, responde perplexo: “nas livrarias!”.
Reparem como o político florentino que subiu a pulso, estrategicamente, com o discurso sempre semeado de números exactos, em ponto de rebuçado, naquela ênfase de rigor tão do agrado do seu público alvo, os pacóvios, é afinal tão “desfasado” do mundo. Nunca vi um escrito que ilustrasse tão bem um espírito.
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Três dias antes porém, de esta crónica me aparecer à frente para que a bebesse com os olhos, estava eu a aparar umas guias que as minhas roseiras lançam para a rua quando se acercou de mim o carteiro e me perguntou, um tanto constrangido, se eu quereria por obséquio adquirir um livro uns tantos euros abaixo do valor cobrado nas livrarias; e, tirado de dentro de um envelope, mostrou-me um exemplar do prémio Leya deste ano, O coro dos defuntos, de António Tavares. Explicou-me depois, embaraçado, que agora aquilo fazia parte das suas obrigações. Declinei educadamente e o pobre homem lá se foi embora, com o dever cumprido.
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Não sei, devo dizer, se António Tavares é um bom escritor. Adaptei, faz já quase trinta anos, dois contos seus (um deles muito bom) para banda-desenhada e fiz a cenografia da sua primeira peça levada à cena (bastante mázinha por sinal, um monólogo em verso branco vagamente existencialista do qual não percebi peva) porque há coisas que, com vinte anos, se fazem por amizade. Com o fim da nossa amizade perdi, confesso, o interesse por tudo o que lhe concerne, incluída a sua obra, digamos assim, literária
O que me obriga, de vez em quando, a manifestar-me a seu respeito é o facto de ele se ter tornado um político relevante (é vereador da cultura e vice-presidente da minha autarquia) e de o seu pensamento, ou pelo menos a sua opinião pública, digamos assim, me aparecer à frente dos olhos de cada vez que me pretendo informar sobre os factos da terra que habito.
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Não sei, por isso, se o que Tavares escreve hoje é literatura. Mas se for o que publica no “jornal” As Beiras, parece-me mais mortadela.

E lamento profundamente o que a crise e a cegueira das privatizações fizeram a uma das mais nobres profissões deste país, a dos carteiros. Ao que eles chegaram agora, constrangidos pelos Correios de Portugal, a impingir charcutaria pelos portais. 

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